Em Portugal, há duas coisas grandes, pela força e pelo tamanho: Trás-os-Montes e o Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, a convulsão; o Alentejo, o fôlego, a extensão do alento. Províncias irmãs pela semelhança de certos traços humanos e telúricos, a transtagana, se não é mais bela, tem uma serenidade mais criadora. Os espasmos irreprimíveis da outra, demasiado instintivos e afirmativos, não lhe permitem uma meditação construtiva e harmoniosa. E compreende-se que fosse do seio da imensa planura alentejana que nascesse a fé e a esperança num destino nacional do tamanho do mundo. Só daquelas ondas de barro, que se sucedem sem naufrágios e sem abismos, se poderia partir com confiança para as verdadeiras. Enquanto a nação andava esquiva pelas serras, ninguém se atreveu a visionar horizontes para lá da primeira encosta. Mas, passado o Tejo, a grei foi afeiçoando os olhos à grande luz das distâncias, e D. Manuel pôde receber ali a notícia da chegada de Vasco da Gama à Índia.
Terra da nossa promissão, da exígua promissão de sete sementes, o Alentejo é na verdade o máximo e o mínimo a que podemos aspirar: o descampado dum sonho infinito, e a realidade dum solo exausto.
Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho, e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta, e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos, mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Sem necessitar de ir ver o tempo aprisionado nos muros de Monsaraz, de subir a Marvão, que me lembra um mastro de prendas erguido num terreiro festivo, de passar por Água de Peixes, que é um albergue de frescura e de beleza na torreira dum caminho, ou de visitar a Sempre-Noiva, onde há perpètuamente um perfume de flores de laranjeira a sair do rendilhado das janelas manuelinas. Embriago-me na pura charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de novo, e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.
Mais do que fruir a directa emoção dum lúdico passeio, quem percorre o Alentejo tem de meditar. E ir explicando aos olhos a significação profunda do que vê. Porque cada propriedade se mede por hectares, são em redil os aglomerados, respeitosos da extensão imensa que os circunda, e um suíno, ou relegado à sua malhada, ou a comer bolota no montado, não faz parte da família, – é que o alentejano pôde guardar a sua personalidade. E talvez nada haja de mais expressivo do que esse limite nítido entre a intimidade do homem e a integridade do ambiente. Assegura-se dessa maneira a conservação duma dignidade que o bípede não deve alienar, nem a paisagem perder. Se há marca que enobreça o semelhante, é essa intangibilidade que o alentejano conserva e que deve em grande parte ao enquadramento. O meio defendeu-o duma promiscuidade que o atingiria no cerne. Manteve-o vertical e sozinho, para que pudesse ver com nitidez o tamanho da sua sombra no chão. Modelou-o de forma a que nenhuma força, por mais hostil, fosse capaz de lhe roubar a coragem, de lhe perverter o instinto, de lhe enfraquecer a razão. E é das coisas consoladoras que existem contemplar na feira de qualquer cidade alentejana a compostura natural dum abegão, ou vê-lo passar ao entardecer, numa estrada, com o perfil projectado no horizonte, dentro do seu carro de canudo. É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador.
Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.
Mas não são apenas essas subtis razões éticas e geográficas que me fazem gostar do Alentejo. Amo também nele os frutos palpáveis duma harmonia feliz entre o barro e o oleiro. Amo igualmente o que o homem fez e a terra deixou fazer. Diante de um tapete de Arraiolos, ou a ouvir uma canção a um rancho de Serpa, implico o habitante e o habitado no mesmo processo criador, e louvo-os no mesmíssimo entusiasmo. Não há arte onde o homem não é livre e a natureza não quer. Dando às mãos ágeis e fantasistas materiais nobres e moldáveis – o mármore, o cobre, a lã, o coiro, e o barro –, a terra alentejana quis que a vida no seu corpo tivesse beleza. E de Norte a Sul, desde as campanhas da Idanha, que já lhe pertencem, às figueiras algarvias, os seus montes, as suas aldeias, as suas vilas e as suas cidades são marcados por um selo de imaginação e de graça. Aqui uma varanda onde um ferreiro fez renda, acolá um pátio onde um pedreiro inventou uma nova geometria, além uma oficina onde um caldeireiro fabrica ânforas esbeltas e vermelhas como cachopas afogueadas. Aproveitando os incentivos do meio e os recursos do seu génio, o alentejano faz milagres. A própria paisagem sem relevo o estimula. Faltava ali o desenho e a arquitectura, que nas outras províncias existem na própria natureza. Pois bem: concebeu ele o desenho e a arquitectura. E, na mais rasa das planícies, ergueu essa flor de pedra e de luz que é Évora!
Beja tem a sua torre de mármore, com uma tribuna para ver meio Portugal; Portalegre os seus palácios barrocos, para encher de solidão; Elvas o seu aqueduto de sede arqueada e a sua feiura para meter medo aos Espanhóis; Estremoz a sua praça do tamanho de uma herdade. Mas Évora olha os horizontes do alto do seu zimbório espelhado, povoa as casas de lembranças vivas e gloriosas, e, sequiosa apenas do eterno, risonha e aconchegada, enfrenta as agressões do transitório com a força da beleza e a amplidão do espírito.
Será talvez alucinação de poeta. Mas porque nela se documenta inteiramente a génese do que somos, o que temos de lusitanos, de latinos, de árabes e de cristãos, e se encontra registado dentro dos seus muros o caminho saibroso da nossa cultura, – se estivesse nas minhas mãos, obrigava todo o português a fazer uma quarentena ali. Uma lei pública devia forçá-lo a entrar na cidade a desoras, numa noite de luar. E, sem guia, manda-lo deambular ao acaso. Seria um filme maravilhoso da história pátria que se lhe faria ver, com grandes planos, ângulos imprevistos, sombras e sobreposições. Uma retrospectiva completa do que fizemos de melhor e mais puro no intelectual, no político e no artístico. Só de manhã seria dado ao peregrino confirmar com a luz do sol a luz do écran. E se ao cabo da prova não tivesse sentido que num templo de colunas coríntias se pode acreditar em Diana, numa Sé românica se pode acreditar em Cristo, e num varandim de mármore se pode acreditar no amor, seria desterrado.
Compreender não é procurar no que nos é estranho a nossa projecção ou a projecção dos nossos desejos. É explicar o que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha valor dentro de nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra de toque dum acto de entendimento. Ora o Alentejo é esse diverso, esse inesperado, esse antagónico. Tudo nele é novo e bizarro para quem o visita. Os arcos, as silharias, as abóbadas e os coruchéus das suas casas; a açorda de coentro e o gaspacho de alho e vinagre das suas refeições; as insofridas parelhas de mulas guisalheiras a martelar as calçadas ao amanhecer; as pavanas cinegéticas que oferece aos convidados; os magustos de bolota; os safões dos homens e o chapéu braguês das mulheres – são ferroadas no nosso cotidiano. Mas o que tem interesse é precisamente revelar aos olhos, ao paladar e aos ouvidos a novidade dessas descobertas. Mostrar-lhes a originalidade de uma vida que se passa ao nosso lado, e tem o inesperado de uma aventura. E mostrar-lho carinhosamente! Sem espírito de simpatia, tudo se amesquinha e diminui. E coisas grandes, como uma semeada ou uma ceifa no Redondo, podem ser reduzidas à pequenez duma vessada ou duma segada beiroa.
Quem vai ao mar, prepara-se em terra – diz o ditado. Aplicando a fórmula ao Alentejo, teremos de nos preparar para entrar dentro dele. Será preciso quebrar primeiro a nossa luneta de horizontes pequenos, e alargar, depois, o compasso com que habitualmente medimos o tamanho do que nos circunda. Agora as distâncias são intermináveis, e as estrelas, no alto, brilham com fulgor tropical. Teremos, portanto, de mudar de ritmo e de visor.
O Alentejo, visitado por alguém que leve consigo a capacidade emotiva e compreensiva de um verdadeiro curioso, é um Sésamo que se abre. As suas fainas, os seus costumes, as mutações impressionantes do seu rosto quando tem frio ou quando tem calor, os seus trajes e a sua própria fala – são outros tantos motivos de meditação e admiração. Mas o que nele é sobretudo extraordinário e a sua inflexível determinação de conservar uma fisionomia inconfundível, haja o que houver. Pode-se preferir uma região mais maneira ou mais angustiada, e uma gente menos soberba, mais autênticamente humana, e mais sinceramente generosa. Herdades mais à medida dos pés, cultivadas por semelhantes sem o ar de fidalgos a gozar férias rurais. Mas não se pode negar a evidência duma terra que merece como nenhuma este nome maternal e austero, e muito menos a dos filhos altivos e afirmativos que dá, imaginários como poetas e duros como azinhos. Cepa e rebentos de tal modo unidos e conjugados, que formam como que um só corpo e um só espírito. Um corpo hipertrofiado, que hipertrofia o espírito por indução.
O alentejano que sobe ao alto do castelo de Évora-Monte, erguido ali ao lado da térrea casinha da Convenção onde a concórdia da família portuguesa foi assinada, ele que tem o sangue de Giraldo-sem-Pavor a correr-lhe nas veias, que assistiu às façanhas e às hesitações do Condestável, e que fez parte da insurreição do Manuelinho, sente naturalmente dentro de si o irreprimível orgulho dum homem predestinado. A seus pés desdobra-se o extenso palco do seu destino: a infindável planície a que dá vida e movimento. São os rios e os ribeiros secos que faz transbordar de suor, os negros montados que alegra de vez em quando pintando de vermelho cada sobreiro, a sua casinha escarolada e erma com uma mimosa na botoeira, e as searas que ondulam e reverberam num aceno de abundância. Um mundo livre, sem muros, que deixou passar todas as invasões e permaneceu inviolado, alheio às mutações da história e fiel ao esforço que o granjeia. Nenhum limite no espaço e no tempo. Seja qual for o ponto cardial que escolha a inquietação, terá sempre o infinito diante de si, em pousio para qualquer sementeira. E essa eterna pureza e disponibilidade do solo exaltam o ânimo do possuidor.
Sim, pobre ganhão que seja, ele é um rei nos seus domínios. Não há outro português mais rico de pão, agasalhado por tão quente manta de céu e dono de tantos palmos de sepultura. Que minhoto ou estremenho se pode gabar de ver sempre o vulto dum seu irmão, que não tem medo da imensidade, a abrir um risco de fogo e de esperança com a ponta da charrua?
Miguel Torga, «Portugal». Coimbra, Ed. Autor, 1950; 4.ª ed. revista 1980.
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