2010/03/25

VAMOS AO TEATRO!!!


Acto II

E a tragédia continuou.
Com grande maneabilidade e descaramento, o cansaço arrastou-se pela casa, abriu torneiras, que pouca água deitaram, e como a água não aquecia, desistiu enfadonhamente deitando-me um olhar de papagaio e gritando com sofreguidão palavrões e ameaças, com terríveis prognósticos de descréditos e chalaças, que me deixaram de rastos lá no meu canto obscuro, já chateado e incomodado e um pouco taciturno.
Até as moscas libertas rodopiavam à minha volta em ousadas acrobacias como que alucinadas e incrédulas pela minha total indiferença e avançavam temerárias causando pruridos vários nos meus membros já inchados, causa provável da medonha inércia e total displicência a que me tenho sujeitado. Por toda a casa um odor fétido a manias, associadas criteriosamente à poeira como nuvens concentradas de lixo cósmico, arremessado de alguma galáxia distante, transportado em algum meteorito já arrefecido, caído na minha cozinha através do buraco negro do tecto sem cor, molhado, enegrecido pelas águas dos algerozes entupidos por detritos poluentes. Num tornado de inúmeras partículas coloridas mas selvaticamente desumanas para as minhas narinas sinusíticas, todo um mundo de inóspitas sensações que atropelam e causam fortes e tentadoras vontades de sair, sem destino, sem nome, sem roupa, sem género, sem raça, sem medo, sem cansaço, nem indiferença, nem ódios, nem críticas, nem nadas… e recomeçar, do menos infinito matemático, pelo menos até ao zero, seria óptimo!
Ansiosamente o silêncio regressou em tom de cálida e sonolenta melodia, entoada pelo côro, que não desarma e me embala nos dias frios e nas noites escuras e surdas de briszas, da minha existência.

O cansaço bateu-me à porta,
Transformada em ansiedades,
e sem que eu desse por isso,
perdi completamente as vontades.

Apesar de tudo, momentaneamente, senti-me de novo acompanhado, pois já a companheira solidão que se ausentara para visitar a amiga desilusão, que vive aqui por perto. A sensação era estranhamente inimaginável, uma simbiose perfeita que alimentaria, com certeza, todas as minhas descrenças e receios em dose dupla.
O que viria a seguir??
As poucas distracções de que uma mente inquieta pode desfrutar, cessaram abruptamente, privado de tal deleite e enquanto as minhas invasoras e incomodativas visitantes passavam pelas brasas, acorri à varanda do meu contentamento, sentimento ainda são, entre tanta insolvência.
Senti-me liberto por momentos e tentei saltar as grades; nas duas tentativas quebradas, aqui e ali por meras distracções.
Tentei uma terceira vez e foi de vez.
Saltei mesmo.

Prisioneiro do meu sonho

Fui Ícaro tal e qual,

C’oa vontade de servir

E uma nova alma encontrar.


Por vezes, tem as suas vantagens

habitar um rés-do-chão.

Podemos dar passos errados

sem nunca cair no chão.


Fiquei feliz e uma áurea nova renasceu em mim.


Senão fosse o meu cuidado, o Tareco da vizinha teria sido colhido por um inergumero qualquer, que ao telemóvel falando, no seu bólide lançado, descurou completamente a passagem daquele gato – e o Tareco de negro pêlo e de olhos esbugalhados, teria perdido uma vida das sete que lhe foi dado!

Imagino o cheiro horrível a gato morto na rua da minha vida, por três ou quatro dias…Que tragédia!!

E todos os gatos viriam. E todos os cães sentiriam…. (O cheiro é claro.) E as pessoas… e os bichos invadiriam a pacatez da rua… Mais uma tragédia seria!!


Enfim…


De novo o cansaço me chama. E a atroz indiferença que brama, reclama e chama palavras e gestos rudes.

E a solidão regressa fria e esfomeada. E a TV que não liga. E água que não aquece. E a braseira que não acende. E o PC que tem vírus. E o carro que não pega…e eu que planeava fugir de todos, tenho que me contentar com um mero sorriso matreiro que virá por aí, talvez acompanhado de redondo e poderoso chuto no traseiro...

(Continua)
João Belém
2010-03-25

1 comentário:

Antónia Ruivo disse...

Amanhã

Amanhã sairei por aí ao encontro da vida
Em cada mão levarei a nudez
Vil e rude da minha pequenez
Irei num caminhar continuo procurar uma ermida

Aquela que deixei desmoronar, não sei onde

Virei a cara num gesto que transponde
Apenas porque gritou e ninguém lhe responde
Da ermida não resta pedra, será que se esconde

Do amanhã, ou de uma vontade destemida
Que teimo a todo o custo dar como perdida
Amanhã, direi estou de partida.

beijinhos