CARTA ABERTA A UM DUX
Dux:
Ando aqui com esta
merda entalada há já algum tempo. A ouvir as diferentes versões, a
pensar nas dúvidas e a pôr-me no lugar das pessoas. Tento pôr-me no
lugar dos pais dos teus colegas que morreram. Mas não quero.
É um lugar que não quero nem imaginar. É um lugar que imagino ser
escuro e vazio. Um vazio que nunca mais será preenchido. Nunca mais,
Dux. Sabes o que é isso? Sabes o que é "nunca mais"?
A história
que te recusas a contar cheira cada vez mais a merda, Dux. Primeiro não
falavas porque estavas traumatizado e em choque por perderes os teus
colegas. Até acreditei que estivesses. Agora parece que tens amnésia
selectiva. É uma amnésia conveniente, Dux. Curiosamente, uma amnésia
rara resultante de uma lesão cerebral de uma zona específica do cérebro.
Sabias Dux? Se calhar não sabias. Resulta normalmente de um traumatismo
crânio-encefálico. Portanto Dux, deves ter levado uma granda mocada na
cabeça. Ou então andas a ver se isto passa. Mas isto não é uma simples
dor de cabeça, Dux. Isto não vai lá com o tempo nem com uma aspirina. Já
passou mais de 1 mês. Continuas calado. Mas os pais dos teus colegas
têm todo o tempo do mundo para saber a verdade, Dux. E vão esperar e
lutar e espremer e gritar até saberem. Porque tu não tens filhos, Dux.
Não sabes do que um pai ou uma mãe é capaz de fazer por um filho. Até
onde são capazes de ir. Até quando são capazes de esperar.
Vocês, Dux... Vocês e os vossos ridículos pactos de silêncio. Vocês e as
vossas praxes da treta. Vocês e a mania que são uns mauzões. Que
preparam as pessoas para a vida e para a realidade à base da humilhação,
da violência e da tirania. Vou te ensinar uma coisa, Dux. Que se calhar
já vai tarde. Mas o que prepara as pessoas para a vida é o amor, a
fraternidade, a solidariedade e o civismo. O respeito. A dignidade
humana e a auto-estima. Isso é que prepara as pessoas para a vida, Dux.
Não é a destruí-las, Dux. É ao contrário. É a reforçá-las.
Transtorna-me saber que 6 colegas teus morreram, Dux. Também te deve
transtornar a ti. Acredito. Mas devias ter pensado nisso antes. Tu que
és o manda-chuva, e eles também, que possivelmente se deixaram ir na
conversa. Tinham idade para saber mais. Meco à noite, no inverno, na
maior ondulação dos últimos anos, com alerta vermelho para a costa
portuguesa? Achavam mesmo que era sítio para se brincar às praxes, Dux?
Ou para preparar as pessoas para a vida? Vocês são navy seals, Dux?
Estavam a preparar-se para alguma missão na Síria? Enfim. Agora sê
homenzinho, Dux. E fala. Vá. És tão dux para umas coisas e agora
encolhes-te como um rato. Sabes o que significa dux, Dux? Significa
líder em latim. Foste um líder, Dux, foste? Líderes não humilham
colegas. Líderes não "empurram" colegas para a morte. Líderes lideram
por exemplo. Dão o peito e a cara pelos colegas. Isso é um líder, Dux.
Não sei o que isto vai dar, Dux. Não sei até que ponto vai a tua
responsabilidade nesta história toda. Mas a forma como a justiça actua
neste país pequenino não faz vislumbrar grande justiça. És capaz de te
safar de qualquer responsabilidade, qualquer que ela seja. Espero
enganar-me. Vamos ver. O que eu sei é que os pais que perderam os filhos
precisam de saber o que aconteceu. Precisam mesmo, Dux. É um direito
que eles têm. É uma vontade que eles precisam. Negá-los disso, para mim
já é um crime, Dux. Um crime contra a humanidade. Uma violação dos
direitos humanos fundamentais. Só por isso Dux, já devias ser
responsabilizado. É tortura, Dux. E a tortura é crime.
Sabes,
quero me lembrar de ti para o resto da vida, Dux. Sabes porquê? Porque
não quero que o meu filho cresça e se torne num dux. Quero que ele seja o
oposto de ti. Quero que ele seja um líder e não um dux. Consegues
pereceber o que digo, Dux? Quero que ele respeite todos e todas. Que ele
lidere por exemplo. Que ele não humilhe ninguém. Que seja responsável.
Que se chegue à frente sempre que tenha que assumir responsabilidades.
Que seja corajoso e não um rato nem um cobardezinho. Que seja prudente e
inteligente. E quero me lembrar também dos teus colegas que morreram.
Porque não quero que o meu filho se deixe "mandar" e humilhar por
duxezinhos como tu. Não quero que ele se acobarde nem se encolha perante
nenhum duxezinho. Quero que ele saiba dizer "não" quando "não" é a
resposta certa. Quando "não" pode salvar a sua dignidade, o seu orgulho
ou até a sua vida. Quero que ele saiba dizer "basta" de cabeça erguida e
peito cheio perante um duxezinho, um patrãozinho, um governozinho ou
qualquer tirano mandão e inseguro que lhe apareça à frente. É isso que
eu quero, Dux. Quem o vai preparar para a vida sou eu e a mãe dele, Dux.
Não é nenhum dux nem nehuma comissão de praxes. Sabes porquê, Dux?
Porque eu não quero um dia estar à espera de respostas de um cobarde com
amnésia selectiva. Não quero nunca sentir o vazio dos pais dos teus
colegas. Porque quero abraçar o meu filho todos os dias da minha vida
até eu morrer, Dux. Percebeste? Até EU morrer. EU, Dux. Não ele.
(in Pés no Sofá)